O
mal personificado e as eleições
Raquel sai aos prantos da sala, corre
alucinada, irrompe pela porta e some em meio às trevas noturnas. Personagem
principal, Raquel é toda bondade, correção, dedicação ao trabalho e voltada
para o bem, mas apesar disso é sistematicamente escorraçada e humilhada por
Odete Roitman. Esta, maligna em toda sua essência, vive apenas para fazer o mal
e infernizar a existência de Raquel e de outras tantas pessoas. Facínora, está
pronta para o mal antes mesmo de sair da cama. Todas as suas ações, sem
exceção, são más, sua vilania não tem limites. Multimilionária graças aos
golpes do baú e às transgressões e pilantragens econômicas, odeia sua terra
natal e matou várias das pessoas que cruzaram seu caminho. Eis uma configuração
clássica do mal como caracterizado há algum tempo atrás. As produções
artísticas mexicanas eram exímias nesse tipo de construção. Qualquer um que
representasse o mal personificado exibia não apenas comportamentos condenáveis,
mas sua expressão física deveria ser assustadora. O rosto tinha que ser
desagradável, o corpo contorcido, usar tapa-olho, os dentes imperfeitos, a
risada malévola e nenhuma de suas atitudes era do bem, todos os seus
comportamentos, sem exceção, eram voltados para o mal.
Atualmente as coisas parecem um pouco
menos claras. Gru, personagem de Meu malvado favorito, estoura balões de
crianças, congela pessoas para não ter que enfrentar filas, ameaça matar o cão
do vizinho, desrespeita fragorosamente as leis de trânsito, engana o serviço
social para adotar crianças com o intuito de realizar um assalto e, por fim
rouba a lua (o que consegue graças a um raio miniaturizador!). Mas Gru também
fica preocupado quando uma das crianças tem o seu brinquedo destruído,
defende-as quando são ludibriadas por um comerciante inescrupuloso, prepara
guloseimas para satisfazê-las, começa a brincar com elas e, por fim, se deixa
envolver em amor paternal pelas crianças adotadas. Próximo ao final do filme
Gru e as meninas são separados e ele luta para reconquistá-las e tê-las sob sua
guarda. Ao estarem juntos, todos sob o mesmo teto como uma família, escreve uma
história infantil onde conta metaforicamente a história deles e de como
escolheu amá-las.
Antigamente o mal parecia estar sempre
do outro lado. Facilmente identificado, por seus constantes atos condenáveis e
sua aparência estética desfigurada, o mal era isolado e rechaçado.
Maniqueistamente nos colocávamos ao lado do bem e criticávamos todos os que
estavam do outro lado. Mas segundo alguns discursos atuais, a realidade é mais
complexa. Diluiu-se ou diluímos a fronteira entre o bem e o mal. Com
menos Odetes e mais Grus no mundo de hoje, a distinção entre o bem e o mal fica
cada vez mais difícil. As produções artísticas atuais têm buscado reproduzir
essa nova caracterização e tentam diminuir a diferença de retidão de caráter
entre os personagens bonzinhos e os vilões. Estes revelam bons comportamentos,
aqueles mostram alguns traços de vilania. Aparentemente a tentativa não vem
funcionando muito bem. Talvez os telespectadores estejamos acostumados com o
maniqueísmo e tenhamos dificuldade em distinguir e escolher entre personagens
que apresentam comportamentos bons e ruins simultaneamente.
Cada um de nós carrega em si o herói e
o vilão, o bem e o mal, ou seja, somos contradições ambulantes perambulando
sobre a face da Terra. Nossa dificuldade em fazer a distinção mostra que não
sabemos lidar com um mundo repleto de pessoas que fazem tanto coisas boas
quanto más. E quando chegam as eleições, a coisa fica ainda mais complicada,
pois temos que escolher representantes imperfeitos, assim como somos todos. E
as campanhas e estratégias de marketing torna-os todos absolutamente iguais.
Cada coligação divulga seus candidatos como o mais preparado, o mais adequado,
o mais virtuoso, o mais, o mais, o mais… Fazem pesquisas sobre os interesses e
valores do cidadão médio e convergem as falas de seus candidatos nessa direção,
de forma que todos falam e prometem praticamente as mesmas coisas, salvo
raríssimas exceções. De outro lado, militantes e defensores dos partidos,
envolvem-se inescrupulosa e incansavelmente em produzir e divulgar informações
sobre como o outro é o errado, maquiavélico, fundamentalista, torpe, mau
caráter, tem os piores aliados e levará o mundo para o caos social e econômico,
a contradição e o abismo.
Nessa configuração eleitoral, alguns
dotados de discernimentos ou interesses escolhem um lado rapidamente e
defendem-no com unhas e dentes. A maioria de nós, entretanto, permanece atônita
com o poder nas mãos enquanto reféns de uma absoluta dificuldade em
caracterizar o bem e o mal. E, com o mal difuso, acabamos por aceitar e eleger
corruptos, ladrões, opressores, fundamentalistas, vigaristas, racistas,
homofóbicos e tantos outros que, embora não sejam o mal personificado, podem
ser o que de pior há para nos representar. A tarefa é difícil neste mundo
multifacetado, mas devemos nos esforçar e escolher o melhor. Mas mais
importante, devemos buscar a democracia participativa e ocupar os espaços que
nos cabem, nas associações, nos sindicatos, nas ruas. Usemos o discernimento
que nos cabe e vamos à luta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário